domingo, 16 de maio de 2010

CADERNO 3

Caderno 3- Política Social CONJUNTURA E POLÍTICA SOCIAL

Os chamados anos FHC, consubstanciados em dois mandatos consecutivos (1995- 1998 e 1999 2002), deram continuidade ao processo de consolidação da democracia e fortalecimento das instituições, nessa década e meia de regime constitucional. O que chama atenção nessa retrospectiva, entretanto, é o fato de que cada um dos mandatos apresenta características bem marcadas. De um lado, a trajetória de regulamentação e efetivação dos avanços sociais introduzidos pela Constituição de 1988 e reativados pela gestão Itamar Franco marcou mais fortemente o primeiro dos dois períodos. Os números referentes aos gastos sociais sinalizam um aumento contínuo e sistemático do gasto per capita até 1998. A extensão de direitos a segmentos até então não contemplados pelas políticas públicas aparece como o mote desse período, conferindo à primeira etapa da gestão FHC uma característica mais social, alavancada pela estabilidade econômica dos primeiros anos do Plano Real. De outro lado, o segundo período FHC parece adquirir um caráter distinto, caudatário de uma nova conjuntura econômica em que fica explícita a fragilidade da economia nacional, sobretudo em face do ambiente de crise internacional, com a expressiva alta do câmbio e o conseqüente aumento da pressão sobre a dívida pública. O governo optou pela reorientação da ação do Estado em seus pilares básicos. Internamente, políticas de cunho mais restritivo passam a nortear esse período, capitaneadas pela adoção de alguns mecanismos legais, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, e pela busca de superávit nas contas públicas para fazer frente aos crescentes compromissos externos. A perspectiva neoliberal, que preconiza um Estado menor e uma política social focalizada no combate à pobreza, ganha espaço em detrimento de grande parcela dos avanços sociais pós-1988. Uma outra marca do governo FHC, esta comum aos dois períodos, foi a introdução de uma discussão do problema racial na agenda pública. Em 1995, organizadores da “Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida” entregaram ao governo federal um documento retratando as condições de vida do negro no Brasil e indicando caminhos para superar o racismo e as desigualdades raciais existentes. Como resposta ao Movimento Negro, foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra (GTI – População Negra), ligado ao Ministério da Justiça. O governo passa a reconhecer, então, a existência de enormes desigualdades entre negros e brancos e a abrir espaços, na sociedade e no próprio governo, para debates sobre a problemática racial, sobre as ações afirmativas e, principalmente, sobre a questão das cotas, em particular sobre cotas nas universidades. A partir da criação do GTI passa a ser proposta uma série de outras ações de caráter afirmativo e valorizativo da população negra no âmbito do governo federal. No ano de 2000, um novo impulso é dado à questão racial com a realização de eventos preparatórios para a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, 8 políticas sociais - acompanhamento e análise 6 fev. 2003 ipea Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada na cidade de Durban, África do Sul, em agosto de 2001. Apesar de todos os avanços obtidos, a atuação do governo federal ainda é constituída por ações desarticuladas, pontuais e descontínuas, promovidas de maneira isolada por determinados órgãos públicos, sem qualquer estratégia de articulação ou integração que possibilite uma redução sustentada do racismo e das desigualdades raciais. No que se refere ao comportamento do mercado de trabalho, o período FHC caracterizou- se pela prevalência de taxas de desemprego elevadas, de queda nos rendimentos médios e de aumento da informalidade, a despeito de uma melhoria em todos os indicadores da área nos dezoito primeiros meses de governo. A partir de 1996, há uma forte inflexão no comportamento desses indicadores, a qual foi motivada pela sobrevalorização cambial e pela grande liberdade na entrada de produtos no país, bem como pelo aumento da produtividade sem aumento significativo na produção. Como conseqüência, o nível de emprego começou a se reduzir, o que foi agravado pelas crises internacionais nos anos que se seguiram e pela resposta do governo brasileiro a essas crises, com aumento da taxa de juros e conseqüente redução da atividade econômica. Com elevadas taxas de desemprego, o rendimento médio dos trabalhadores inicia uma trajetória de queda que se estende por todo o período. Há um aumento da informalidade, ou seja, do contingente de trabalhadores sem carteira assinada ou daqueles que trabalham por conta própria. O crescimento desse setor repercute diretamente no financiamento do sistema de proteção social, que passa a contar com um número cada vez mais restrito de contribuintes. A parcela de trabalhadores desprotegidos cresce com a informalidade, mas a atuação do Estado nas políticas de emprego permanece extremamente focalizada no emprego formal. O setor de Segurança Pública foi fortemente marcado, na gestão FHC, pela publicação do Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) em 2000, momento em que o governo federal passa a demonstrar um real comprometimento com a área. Até 1999, a ação federal resumia-se a apenas dois programas que tratavam, respectivamente, do reaparelhamento da Polícia Federal e dos investimentos no sistema penitenciário nacional, retirando a questão da segurança pública do círculo de matérias de competência exclusiva dos estados. A evolução dos indicadores da área de segurança indica um crescimento contínuo da criminalidade e da violência durante todo o período FHC, não apenas nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo – influenciados, principalmente, pelo tráfico e pelo crime organizado –, mas denota também um crescimento ainda mais acelerado nos estados das regiões Nordeste e Norte do país. Caracterizam ainda o período o aumento dos homicídios entre jovens, também com destaque para SP e RJ, e a utilização banal de armas de fogo. No setor agrário, o acompanhamento de alguns índices de qualidade de vida e de desenvolvimento desse segmento mostram que, apesar de alguns indicadores apresentarem uma pequena melhora no período, esta evolução nunca foi capaz de alterar de maneira significativa a realidade da população rural. É fato que, durante o período FHC, os índices de qualidade dos domicílios, abastecimento de água com canalização interna, rede de esgoto e aquisição de bens de consumo apresentaram um crescimento significativo. No entanto, essesíndices mantiveram-se sempre em patamares abaixo do esperado e com uma relevante defasagem em relação ao setor urbano. De maneira geral, a atuação governamental traduziu-se em ações desarticuladas e insuficientes, incapazes de alcançar níveis satisfatórios de cobertura da população rural ou de alterar ipea políticas sociais - acompanhamento e análise 6 fev. 2003 9a condição de exclusão a que este grupo está submetido. A comunidade rural permanece sob níveis de desenvolvimento muito inferiores aos verificados no setor urbano. O pequeno produtor mantém-se desvalorizado e desestimulado, encontrando grandes dificuldades para se inserir no mercado de maneira competitiva. Na área de Cultura, o governo Fernando Henrique recebeu, ainda como herança do período Collor, um setor esvaziado, com instituições e políticas desestruturadas. Em resposta a essa situação e às reivindicações dos agentes culturais, há uma inflexão no governo FHC marcada pela reorganização e a reconstrução institucional da área, bem como pela recriação do Ministério da Cultura (MinC). Grandes avanços são obtidos, influenciados fortemente pelos mecanismos de financiamento criados ou modernizados na segunda metade dos anos 1990, principalmente pelas leis de incentivo à cultura, editadas no início da década de 1990 (Lei Rouanet – 1991 e Lei do Audiovisual – 1993). Esses instrumentos legais foram sendo ajustados ao longo dos anos e permitiram que o setor passasse a receber aportes significativos de recursos para financiamento, oriundos tanto da esfera pública quanto da esfera privada, recursos que cresceram bastante no início da década, mas mantiveram-se relativamente estabilizados ao longo dos anos. A revitalização do cinema nacional, dos museus e das bibliotecas é um exemplo da política cultural da gestão FHC. No entanto, essa reestruturação, apesar dos inegáveis avanços alcançados, não foi capaz de desconcentrar o acesso à cultura, que permanece muito restrito aos grandes centros urbanos. Grande parte dos municípios brasileiros ainda não possui bibliotecas, museus, teatros ou mesmo cinemas. No âmbito da Educação, as políticas do início do governo FHC caracterizaram-se tanto por iniciativas de descentralização da gestão da área educacional quanto por uma atuação extremamente focalizada no ensino fundamental, que garantiu um nível de acesso praticamente universal sem, no entanto, lograr uma igual garantia de acesso a um ensino de qualidade. A criação, em 1996, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef) e as primeiras experiências do governo federal com o Programa Bolsa-Escola, a partir de 2001, contribuíram significativamente para a universalização do acesso e para a redução dos níveis de evasão e repetência no ensino fundamental. A educação infantil, por sua vez, durante toda a gestão FHC, ficou relegada a um plano assistencial, com uma expansão do nível de coberturaextremamente reduzida. Já o ensino médio experimentou momentos distintos durante os últimos oito anos, tendo sido até o final da década de 1990 colocado em um plano secundário, com despesas residuais. Essa tendência foi alterada com o lançamento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em 1996, instituindo o conceito de Educação Básica, que engloba desde a educação infantil até o ensino médio, estabelecendo uma obrigatoriedade progressiva e a sua gratuidade. A partir da promulgação da LDB – e o conseqüente estabelecimento das Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio em 1998 – e do aumento da demanda por expansão no atendimento, o ensino médio começa a ser mais valorizado. No ensino superior, a atuação do governo baseou-se no estímulo à expansão do número de vagas, contudo sem o aumento dos gastos federais, o que pôde ser realizado a partir de uma flexibilização e agilização do processo de credenciamento e reconhecimento de cursos e instituições privadas. A fim de fiscalizar a qualidade do ensino oferecido, o governo instituiu mecanismos de avaliação, como o Exame Nacional de Cursos (o chamado Provão) e a Avaliação das Condições da Oferta dos Cursos de Graduação. O esforço da ação fis10 políticas sociais - acompanhamento e análise 6 fev. 2003 ipea calizadora e avaliadora do Ministério da Educação (MEC) em face do ensino de um modo geral aparece como um dos pontos positivos da gestão FHC na área de Educação. A perspectiva de criação de um campo de ação governamental denominado Seguridade Social, no qual se incluiriam as áreas de Saúde, Assistência Social e Previdência Social, composição planejada no próprio texto constitucional, não logrou efetivar- se no período FHC. Com efeito, as três áreas permaneceram estanques e sem sincronismo; o próprio Orçamento da Seguridade Social, previsto constitucionalmente, jamais se consolidou como instrumento de ação integrada, sendo unicamente um quadro demonstrativo das despesas governamentais em Saúde, Assistência e Previdência Social, respectivamente. Além disso, em 1999, o governo Fernando Henrique extinguiu formalmente, por meio de medida provisória, o Conselho Nacional de Seguridade Social (CNSS), proscrevendo, na prática, o principal instrumento institucional de integração da ação governamental na perspectiva da Seguridade Social, tal como concebidoconstitucionalmente. As ações no âmbito da Saúde, da Assistência e da Previdência Social mantiveram-se em suas baias. Na área de Saúde, a despeito de uma melhoria inegável no setor sob vários aspectos nos últimos oito anos, o Brasil ainda permanece em desvantagem quando comparados os indicadores gerais de saúde brasileiros e os de outros países do continente americano. Os dados sobre esperança de vida ao nascer e mortalidade infantil reforçam essa idéia, apresentando constante melhora ao longo dos anos, mas a taxas cada vez menores e sempre inferiores à quase totalidade dos doze países americanos com população superior a 12 milhões de habitantes. Quando se fala em controle de enfermidades, o período FHC foi marcado por resultados bastante contraditórios – positivos em relação a algumas doenças, como Aids e aquelas controláveis por vacinas –, ao mesmo tempo em que se viu ressurgir doenças praticamente erradicadas, como hanseníase, malária e dengue. O setor de medicamentos foi alvo de várias políticas que atuaram de maneira positiva no sentido de solucionar o problema da falta de remédios, como o incentivo à produção nacional e a implantação dos medicamentos genéricos. São destaques desse período: a intensificação, a partir de 1998, do processo de descentralização da gestão do SUS para os estados e, principalmente, para os municípios; a redução das desigualdades regionais de acesso aos serviços do SUS, sem, contudo, conseguir resolver o problema da insuficiência da oferta de serviços mais complexos; e a expansão da oferta básica de saúde. No que se refere à saúde suplementar, esta passou a ser regulada pelo governo federal a partir de 1998, tendo sido criada, em 2000, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), responsável por promover a concorrência e a defesa dos direitos dos consumidores de planos individuais. No tocante às políticas de Assistência Social, o período em análise foi marcado por uma atuação difusa, na qual diferentes instâncias do governo federal, e não apenas a Secretaria de Assistência Social (depois Secretaria de Estado de Assistência Social – Seas), elaboraram e executaram ações e programas de cunho assistencial, voltados para o combate à pobreza. Casos como a criação do Comunidade Solidária, em 1995, vinculado à Presidência da República, o Bolsa-Alimentação, do Ministério da Saúde, e o Bolsa-Escola, do Ministério da Educação, são exemplos importantes dessa realidade. Esses programas, desenvolvidos fora do âmbito da Seas, não foram submetidos a nenhum tipo de controle, planejamento ou análise por parte da secretaria, entidade responsável pela elaboração da Política Nacional de Assistência Social (PNAS). ipea políticas sociais - acompanhamento e análise 6 fev. 2003 11 Como conseqüência, as políticas de Assistência Social, tomadas em nível amplo, apresentaram- se de maneira desarticulada e desconexa, resultando em programas e ações sobrepostos ou mesmo concorrentes. A primeira gestão FHC caracterizou-se por uma preocupação em ver a assistência como parte de um sistema de seguridade social orientado pela Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), promulgada em 1993. A partir da segunda gestão, as ações de combate à pobreza passaram a se concentrar em programas do tipo “renda-mínima”, o que foi reforçado com a criação do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, cujos recursos eram destinados a programas que tinham como foco as famílias com renda per capita inferior à linha de pobreza ou as famílias em municípios em situação extrema de miséria. Vale destacar, ainda, o processo de transferência de um sistema centralizado para outro descentralizado e participativo de gestão da assistência, com a realização de convênios com entidades e municípios e a criação de fundos, conselhos e planos. No que tange à Previdência Social, deve-se destacar, no período em foco, o esforço em consolidar o sistema previdenciário em suas bases atuariais por intermédio do aprimoramento de mecanismos legais de preservação do sistema. Nesse sentido, a Emenda Constitucional n° 20, de 1998, e a Lei do Fator Previdenciário, Lei n° 9.876, de 1999, constituem dois marcos legislativos. Com efeito, as mudanças propostas pelo governo FHC ao longo de suas duas gestões visavam a sanear financeiramente o sistema previdenciário, ainda que isso pudesse por em questão a própria idéia de proteção social a que estava submetido o sistema por força do texto constitucional. A idéia de uma reforma previdenciária mais ampla, suscitada pelo acúmulo de necessidades de financiamento ocorrido a partir de 1996, engendrou um amplo debate acerca dos limites da privatização do sistema. A reforma propriamente dita não se efetivou, ainda que algumas reformulações importantes tenham sido implementadas – caso da Previdência Complementar e de algumas alterações no sistema, sobretudo no que tange aos servidores públicos. Contudo, a despeito do momento delicado e ao contrário do que ocorreu em outros países da América Latina, o sistema previdenciário brasileiro manteve-se apto a cumprir pontualmente com o pagamento de benefícios para mais de 20 milhões de segurados, desempenhando um papel importante no combate à pobreza que assola os segmentos mais carentes da população. De um modo geral, o legado da gestão FHC parece definir alguns desafios para o novo governo. A questão do trabalho e do emprego continua aberta: desemprego, baixíssimos rendimentos e informalidade grassam, e, nesse sentido, o desafio que se coloca é o de se forjar políticas de geração de emprego e renda com um caráter inclusivo, ou seja, a promoção do emprego associado a um projeto de financiamento efetivo de um Estado do Bem-Estar que se estenda a todos os segmentos da população. Do mesmo modo, a efetiva implantação de uma cultura de Seguridade Social que integre Saúde, Assistência e Previdência Social continua na ordem do dia. A privatização de segmentos de prestação de serviços nas áreas de Saúde e Previdência, assim como a ausência de uma definição mais precisa do papel das organizações filantrópicas na constituição de uma sistemática de ação no âmbito assistencial constituem outros desafios importantes. Na área de Segurança Pública, o desafio da reversão do ambiente de caos social a que estão submetidos alguns dos principais centros urbanos do país deverá suscitar o equacionamento de uma política que associe o tema mais diretamente à questão do 12 políticas sociais - acompanhamento e análise 6 fev. 2003 ipea resgate da cidadania e de sua extensão aos segmentos populacionais mais pobres. Cidadania e democratização do acesso aos serviços devem ser também o mote da área da Cultura. E nesse mesmo sentido, a questão agrária deverá incluir novos interlocutores dos movimentos sociais, cuja expressão mais concreta é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Em síntese, a perspectiva de uma política social inclusiva e de resgate da cidadania aparece como pano de fundo para os novos tempos.
Fonte:IPEA. Políticas Sociais - Acompanhamento e Análise 6 fev. 2003 Disponivel em:http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/bpsociais/bps_06/conjuntura.pdf

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